Que concepção de ensino da leitura a BNCC estabelece como diretriz?
Por: Mônica Timm de Carvalho (CEO da Plataforma de Leitura Elefante Letrado)
A BNCC “é um documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica” (BNCC, 2017, p.7).
Como referência nacional para a formação dos currículos de todas as escolas do país, a BNCC (Base Nacional Comum Curricular) indica expectativas de aprendizagem que precisam ser garantidas aos estudantes brasileiros.
Ao defini-las, o documento também apresenta os referenciais teóricos que sustentam tais escolhas, e é das concepções sobre a leitura presentes no meio educacional e aquela que recebe ênfase na BNCC que se pretende aqui discorrer.
Ler talvez seja uma das mais complexas aprendizagens para o cérebro humano. Nosso arcabouço biológico tem estrutura para naturalmente aprender a falar, mas necessita de instrução específica, de intencionalidade no ensino, para que consiga aprender a ler e a escrever. Esse é o motivo pelo qual é tão importante discutir-se o ensino da leitura.
São múltiplos, contudo, os entendimentos sobre a leitura. “Ela pode ser considerada como uma experiência individual única, como um exercício dialógico, como um processo de decifração, interpretação ou compreensão, como uma interação com o texto” (PEIXOTO e ARAÚJO, 2020). Sua complexidade, portanto, envolve vários aspectos, que vão desde a decodificação de letras e fonemas à compreensão de um texto através de estratégias ou habilidades de leitura. É possível dizer que aprender a ler significa reconhecer o sistema linguístico, mas não se limita a isso.
O processamento da leitura envolve aspectos cognitivos, sociais, interacionais, históricos e do contexto, que se integram na atribuição de significados ao que é lido. À lógica da decodificação do texto precisam também ser incluídos os conhecimentos prévios do leitor: seu conhecimento de mundo e das práticas sociais da leitura, seu conhecimento linguístico etc. A ativação desses conhecimentos prévios permite ao leitor fazer as inferências necessárias para relacionar diferentes partes do texto em um conjunto coerente. Dessa forma, a compreensão é produção de sentido feita pelo leitor, na interação com o texto.
A leitura, sendo uma atividade interativa, social e discursiva, é um dos mais importantes meios que a sociedade possui para processar, divulgar e conquistar o conhecimento. Sua relevância na sociedade fez com que se tornasse interesse de múltiplas áreas, em especial a Psicologia Cognitiva, a Linguística e a Literatura.
Inicialmente, os estudos sobre leitura (século XX) tiveram foco nos processos mentais, tais como a memória, a compreensão e a capacidade de fazer inferência – objetos de estudo da Psicologia Cognitiva. Paralelamente, pesquisas da Linguística sobre os aspectos constitutivos do texto foram desenvolvidas, contribuindo também para os estudos sobre a compreensão. Já a perspectiva literária, uma terceira forma de analisar a leitura, tem suas especificidades centradas no sujeito leitor e na concepção do texto como objeto artístico, não sendo aqui levada em consideração.
Cada uma das abordagens sobre a leitura repousa em diferentes argumentos ou perspectivas de análise. Para a Linguística Aplicada (LA), por exemplo, entender um texto seria uma questão de significação determinada por aspectos cognitivos e por fatores do contexto. Com a chegada das Teorias de Enunciação, pela Pragmática, da Análise do Discurso e da Sociolinguística Internacional, a perspectiva de leitura como uma prática social ganhou mais visibilidade e passou a também integrar o campo da Linguística Aplicada.
Na BNCC, percebe-se a tomada de uma visão integradora da leitura, em que é possível identificar a consideração: (a) ao papel do leitor, (b) ao papel do texto e (c) ao processo de interação entre o leitor e o texto (LEFFA, 1996, p .17). Assim sendo, a BNCC não se limita a entender a leitura como somente como um processo de extração de significado (ênfase no texto), tampouco como um processo de atribuição de significado (ênfase no leitor). Ela propõe também considerar o que acontece quando leitor e texto se encontram.
ROJO (2002) faz uma síntese dessas operações que ocorrem quando um leitor interage com um texto.
Quadro 1: Capacidades de compreensão
Ativação de conhecimentos demundo | O leitor. de modo prévio ou durante a leitura, relaciona constantemente seus conhecimentos, e, caso não consiga compreender, utiliza outras estratégias de caráter inferencial |
Antecipação ou predição de conteúdo
ou propriedades dos textos |
O leitor, a partir da situação de leitura, das finalidades, do suporte do texto, das
esferas de comunicação, dos títulos, fotos ou legendas, levanta hipóteses sobre conteúdo do texto. |
Checagem de hipóteses | Ao longo da leitura, o leitor, checa suas hipóteses, confirmando-as ou desconfirmando-as, podendo também buscar outras mais adequadas. |
Localização e/ou cópia de informação | Em diferentes práticas de leitura o leitor busca e localiza constantemente informações relevantes a fim de armazená-las e reutilizá-las de maneira reorganizada posteriormente. Essa é uma estratégia básica de leitura, com exceção da leitura por prazer ou fruição. |
Comparação de
informações |
O leitor está sempre comparando informações baseado em outros textos ou em seus conhecimentos prévios. |
Generalizações | Essa é uma estratégia que contribui muito para a síntese resultante da leitura, estamos sempre generalizando algum texto, pois não conseguimos guardar todos os textos fielmente na nossa mente. |
Produção de
inferências locais globais |
Uma inferência local pode ser realizada através de uma lacuna de compreensão
provocada por, por exemplo, um vocábulo do texto desconhecido pelo leitor, assim, o leitor, pelo contexto do texto, descobre um novo significado para o termo. Uma inferência global é realizada quando o leitor utiliza pistas que o autor deixa no texto, seus conhecimentos de mundo e conhecimentos lógicos para efetiva compreensão, já que, nem tudo está dito num texto. |
Fonte: ROJO (2002)
Quadro 2: Capacidades de apreciação e réplica do leitor em relação ao texto
Recuperação do
contexto de produção do texto |
Para interpretar um texto de modo discursivo, o leitor precisa situá-lo, ou seja,
inferir quem é o autor, que posição social ele ocupa, que ideologias assume, em que situação escreve etc. |
Definição de finalidades e metas nas atividades de leitura | A ativação de estratégias ou do exercício de capacidades está subordinado às metas ou finalidades de leitura impostas pela situação em que o leitor se encontra. Lemos para estudar, para pesquisar, para fruir esteticamente, dentre tantas outras finalidades. |
Percepção de relações de intertextualidade – no nível temático | Ler um texto é colocá-lo em relação com outros textos já conhecidos, quando essa relação é estabelecida pelos temas ou conteúdos abordados nos textos, há intertextualidade. |
Percepção de relações de interdiscursividade – no nível discursivo | Compreender um discurso é colocá-lo em relação com outros já conhecidos. Quando essa relação é estabelecida num dado texto, como por exemplo nas paródias, nas ironias e nas citações, há interdiscursividade. |
Percepção de outras linguagens | Na leitura, há a percepção de outras linguagens como sons, imagens, diagramas, imagens movimento, gráficos, hiperlinks no caso de hipertextos, por exemplo. Essas outras linguagens se tornam elementos constitutivos dos sentidos dos textos, não limitando a leitura somente à linguagem verbal escrita. |
Elaboração de apreciações estéticas e/ou afetivas | Na leitura, estamos sempre replicando ou reagindo aos textos, sentindo prazer,
apreciando a linguagem, apreciando ou não um autor etc. Essas atitudes podem interromper uma leitura ou ajudá-la. |
Elaboração de apreciações relativas a valores éticos e/ou políticos | Quando lemos, estamos discutindo com o texto, ou seja, discordamos, concordamos, criticamos os posicionamentos etc. Essa capacidade nos leva a uma réplica crítica em relação às posições assumidas pelo autor no texto. |
Fonte: ROJO (2002)
A BNCC, ao assumir uma perspectiva enunciativo-discursiva da linguagem, concebe a leitura como sendo:
- interativa social e discursiva;
- relacionada às práticas de uso e reflexão;
- orientada por condições de produção;
- alicerçada em apreciação e valorações estéticas, éticas, políticas e ideológicas.
Na Plataforma de Leitura Elefante Letrado, essa mesma concepção integradora de leitura é o que sustenta a arquitetura pedagógica que visa a desenvolver a compreensão. Além disso, ao incluir crianças em um ambiente digital de letramento, a Plataforma amplia a vivência em práticas de leitura, notadamente naquela que mais se desenvolve na contemporaneidade: a leitura em ambiente virtual.
Referências
ROJO, R. Letramento e capacidades de leitura para a cidadania. 2002. Disponível em: http://arquivos.info.ufrn.br/arquivos/2013121153a8f1155045828c12733b68e/Letramento _e_capacidade_de_leitura_pra_cidadania_2004.pdf. Acesso em: 24 abr. 2020.
KLEIMAN, A. Texto e Leitor: aspectos cognitivos da leitura. 15ª edição. São Paulo: Pontes Editores, 2013.
BRASIL, Base Nacional Comum Curricular, Brasília: MEC/SEB, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.p df. Acesso em: 03 abr. 2020.
ARAÚJO, Denise Lino de, PEIXOTO, Mayara Carvalho. O conceito de leitura na BNCC do Ensino Fundamental. Leitura, Maceió, n. 67, set./dez. 2020 – ISSN 2317-9945. Dossiê Linguística Aplicada, p. 55-68
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